A desconsideração da personalidade jurídica foi expressamente positivada no ordenamento jurídico pátrio de forma pioneira por meio da redação do art. 28 do CDC (Lei 8079/90) e vem sendo disseminada nas últimas décadas em diversas outros normativos: Lei 8884/94, Lei 9605/98, Lei 10406/02, Lei 12846/13, Lei 13.105/15 (novo Código de Processo Civil) e na Lei 13.306/16 (lei das Estatais).
No âmbito da Administração Pública, este tipo de medida já era defendido por Diógenes Gasparini em sucessivas obras coletivas[1] e em obra de autoria de Jessé Torres e Marinês Dotti[2], tese hoje amplamente difundida. Na Lei 8.666/1993, o art. 88 já tinha o permissivo para estender a aplicação da pena aos agentes determinantes da inidoneidade.
O Tribunal de Contas, de modo igual, possuía posicionamento no sentido da aplicação da inidoneidade em caso de gozo de benefício indevido, conforme Acórdão n.º 2578/2010 - Plenário, tendo estendido esse entendimento aos membros do mesmo grupo em situação também de confusão patrimonial, por meio Acórdão n.º 4.042/2020, também do Plenário.
Da mesma forma, a 2a Turma do STJ, ao julgar o RMS 15166/BA, em agosto de 2003, já defendia a desconsideração da personalidade jurídica pela Administração Pública, com fundamento no princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos tutelados, desde que precedida de processo administrativo em que se assegure ao interessado o contraditório e a mais ampla defesa.
A Nova Lei de Licitações, contudo, inovou do ponto de vista das contratações públicas, ao prever expressamente em lei a desconsideração da personalidade jurídica por ato administrativo:
"Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia".
Além do art. 160 em exame, o art. 14, da Lei 12.846/13 - que trata da responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração - também autoriza a desconsideração no âmbito do processo administrativo:
"Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a ampla defesa".
Defendido já em decisões tanto do TCU como do STJ e as previsões legais mencionadas, no âmbito do STF ainda não houve pronunciamento sobre a validade da aplicação da “Disregard Doctrine” nos procedimentos administrativos. Todavia, a Suprema Corte não deixou de sinalizar, quando do exame do MS 32.494[4] e da concessão de tutela cautelar para fins de suspender a eficácia de parte de Acórdão do TCU[5], que o fez por razões de prudência, enquanto a questão não seja definitivamente decidida na Suprema Corte, não deixando de reconhecer, por conta disso, que no âmbito administrativo, doutrina e jurisprudência, com argumentos válidos, têm sido favoráveis ao uso da referida teoria.
Consoante jurisprudência do TCU e da extensão dos efeitos da sanção administrativa ao grupo econômico, a apuração de envolvimento de sócios, administradores, profissionais e da atuação por terceira pessoa dentro ou fora de grupo econômico ocorreria no mesmo processo em que se der a inabilitação do competidor punido.
Note-se que ao prever a extensão dos efeitos ao grupo econômico, a lei administrativa vai além dos termos do art. 50 do Código Civil. Na realidade, a noção de desconsideração da pessoa jurídica do código civil permite a desconsideração excepcional para atribuir reponsabilidade patrimonial a pessoas diversas da personalidade jurídica. Sua razão de ser é a diferenciação entre pessoa jurídica e as demais pessoas que colaboram para a sua formação. A situação é muito diversa da encontrada na lei geral de licitações em contrato. Qualquer pessoa no mundo civil pode não responsabilizar patrimonialmente seu mau fornecedor, no entanto, a noção de autopreservação faz com que ele tenha o legítimo direito de não mais utilizar aquele fornecedor. Essa noção de legítima defesa ou autopreservação é o que se aplica ao caso, o Poder Público tem o acúmulo de interesses que devem ser satisfeitos: a expectativa de bons fornecedores de terem a chance de contratar com o Estado, consumidor qualificado no mercado; o não desperdício de recursos que não lhe pertencem, mas ao povo brasileiro ou a projeções federativas deles; a organização político/financeira do orçamento que só permite a realização da atividade uma vez e impõe ao Poder Executivo um grande desgaste para obter os recursos de volta para obter o mesmo bem ou utilidade não adquirido pela desídia ou dolo do fornecedor.
No âmbito civil, a restrição pode ser eterna, mas nos procedimentos administrativos a projeção da lei é que seja de 1 a 3 anos, induzindo a tentativa de reabilitação do fornecedor.
Dadas as diferenças, percebe-se que se o Poder Público quiser desconsiderar a personalidade jurídica para a responsabilização patrimonial de terceiros terá que seguir os requisitos restritivos do art. 50 do Código Civil.
Não obstante, quando da autopreservação, a desconsideração pode ser mais ampla para alcançar aqueles que comprometeram o erário, permitindo a lei administrativa, e exigindo dos órgãos de controle, que se alcancem os profissionais, gerentes ou sócios determinantes do dano anterior a fim de evitar danos futuros pelo comportamento assemelhado do mesmo agente de mercado. Assim, não há restrições ou limites para essa identificação e ampliação dos efeitos da sanção no art. 160 desse diploma legal.
Para mais informações, sugiro consultar: Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai – Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
[1] BRASIL, STF - Plenário, MS 32.494/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 11.11.2013. [2] Trata-se do item 9.4 do Acórdão 2593/2013 do Plenário do TCU. [3] JUSTEN FILHO, Marçal Justen. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 18ª edição. São Paulo: Thomson Reuters, 2019, p. 1516-1518. [4] GASPARINI, Diógenes. Disregard Administrativa pp.181- 210 in WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa (org.). Direito Público: Estudos em Homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. GASPARINI, Diógenes. Desconsideração Administrativa da Pessoa Jurídica pp.191- 220 in MARINELA, Fernanda; BOLZAN, Fabrício (orgs.). Leituras Complementares de Direito Administrativo: Advocacia Pública, 2ª edição, revista e atualizada, Salvador: Juspodivm , 2010. [5] PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres e DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas. 3ª. Edição. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 467-475.
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